Análises

Relembramos um clássico na discografia de Carlinhos Veiga, lançado em 2002 - Mata do Tumbá

Thiago Junio em 25/05/23 1602 visualizações
Relembramos um clássico na discografia de Carlinhos Veiga, lançado em 2002 - Mata do Tumbá

Lançado em 2002, Mata do Tumbá, o terceiro e o mais ousado trabalho de Carlinhos Veiga, é um prodígio em termos estéticos, uma ambiciosa produção acústica do pastor presbiteriano que combina apreço pelos estilos regionais brasileiros com excelentes letras contextualizadas; estas conectam a fé cristã, de maneira poética, com a própria realidade brasileira. Não é uma novidade o esforço do compositor em valorizar a musicalidade tupiniquim: Um dos fundadores e ex-integrantes da banda Expresso Luz, também é colunista na revista Ultimato, nesta qual um dos temas trabalhados por ele é a produção artística nacional. Além disso, é multi-instrumentista e arranjador brasileiro, sendo que boa parte dos instrumentos gravados na obra em análise ele mesmo tocou, como a viola caipira, o violão, a viola de cocho, o baixo e charango.

Se o currículo do artista não deixa a desejar, a produção do álbum também não. Projetado em homenagem aos cinquenta anos da Mocidade para Cristo (MPC) no Brasil, na obra podem ser encontrados bumba meu boi, a folia de reis, choro, pagode de viola, moda de viola e música popular brasileira, enfim, um pouco de Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Mato Grosso. Carlinhos fez uma apuração de ritmos regionais por meio de pesquisas e apelou para um arranjo acústico. A cozinha foi preenchida por participações de vários músicos, entre eles, Hélio Delmiro, que figura em 3 faixas, ora com violão, ora com a viola caipira, Ricardo Amorim (violões), Cláudia Barbosa (flauta e vocal), Eline Márcia (vocal), Sandro Araújo (percussão), Léo Barbosa (percussão), Nelsinho Rios (baixos), Norma Lílian (violoncelo), Kalley Seraine (violino e rabeca), Romero Fonseca (gaita e voz), Reny Cruvinel (violão e voz) e Cindy Folly (violino).

Em termos poéticos, o álbum não perde o seu encanto, ao encaixar versos que combinam simplicidade, beleza e temas regionais. Não se situa como uma obra conceitual, entoando conceitos complexos ou textos intrincados; ao contrário, se os arranjos enfocam o regionalismo brasileiro, as letras recorrem a uma lírica abrasileirada, um estilo poético que revela as singularidades também regionais do país. Esse arranjo da poesia e da instrumentalização demonstra um equilíbrio entre conteúdo e formato, ao harmonizá-las num mesmo sentido.

Além disso, se, desde a antiguidade grega, o Belo era caracterizado como um dos transcendentais, e em Wittgenstein encontramos um apontamento para o sentido da vida para fora do mundo, Mata do Tumbá poderia ser colocado como um padrão de um perfeito signo estético, ao expressar de maneira sublime significante e significado; significante, na produção e execução das canções obra, na criação poética, na intencionalidade em assumir as características do Brasil; significado, ao evocar o sentido para além da realidade imediata, uma obra que reflete o Belo, intimamente ligado com a Verdade e o Bem, e, por isso, se torna plenamente bela. Carlinhos consegue apresentar as percepções culturais locais e individuais sem abdicar daquilo que as transcende, Cristo.

Se as faixas em seu todo mantém o mesmo ritmo e alto nível de qualidade, tarefa difícil é destacar aquelas que conseguem se sobressair. Entre essas, poderiam ser citadas várias. Uma delas, a faixa introdutória Acuípe, faz referência a um local de Bahia, a praia de Acuípe, enquanto narra poeticamente a beleza que o acompanha. Santa Folia é uma referência direta à folia dos reis, uma festa típica do nordeste e em regiões mais caipiras do sudeste e centro-oeste, uma faixa bem regionalista. Nesse ritmo, a canção conta a infância de Cristo, quase em espírito natalino, e, com uma tal habilidade poética, Carlinhos a dramatiza com os próprios anseios humanos: “Esses homens eram mais do que simples mortais / Reis poderosos, mestres da ciência / Buscando respostas pros próprios dilemas / No encalço da estrela”.

Aprendendo a Vida traz um choro, ou quase um pagode de viola, uma execução sublime, enquanto narra a importância de não acusar os outros de maneira premeditada e de se enxergar. Esse Mundo Tá Louco é uma das faixas que mais incorpora os traços da cultura caipira, desde os sotaques às expressões populares soltas entre os versos, próximo ao repente, numa moda de viola agitada, enquanto narra a complexidade desse mundo em constante progresso (ou regresso).

Uma Vida Melhor é uma poesia sobre as belezas de Mato Grosso como criação divina em um sertanejo raiz. Rancheira, como diz o próprio nome da canção, segue em um estilo rancheiro, gênero de origem rural, e narra esse tipo de vida interiorana. Aranharê, em tempos de debate acerca da Amazônia e os indígenas, se não encerra a questão, vem ao menos se posicionar sobre, sem os tons combatentes atuais, em uma musicalidade e poética rica, principalmente em expressões indígenas.

Nele Esperarei é um pagode de viola e uma das melhores canções da obra. Ela dramatiza a vida do povo rural, a simplicidade e suas dificuldades, como a falta de recursos financeiros e o descaso público, todavia farta da ordinariedade extraordinária de uma vivência comunitária e em família – aquilo que G.K. Chersteton expressou, um homem comum, uma mulher comum e seus filhos comuns. E, assim, diante dos dilemas, Carlinhos evoca a esperança cristã como aquilo que o fortalece, numa referência direta a Habacuque 3.

Muito pra Contar é sobre a MPC, movimento do qual ele fez parte, já que o álbum também foi feito em comemoração aos seus cinquenta anos. Curiosamente, o próprio acróstico da canção forma a mesma abreviatura da Mocidade para Cristo. Guarnicê da Esperança, outra referência direta a uma manifestação popular brasileira, fecha o álbum. A palavra guarnicê se refere a uma manifestação folclórica, o Bumba-meu-boi, e é um momento de preparação; os participantes se reúnem em torno de uma fogueira e esquentam os seus tambores e pandeirões, cantando a toada que anuncia a chegada do Boi. Porém, Carlinhos conclama outra vinda, a vinda da alegria e da esperança encarnada em Jesus, como expressa os versos “Vamos, canta meu povo / Que a alegria já vem chegando / Trazendo na sua batida / Esperança pra aquele / Que tá precisando”.

Além disso, o projeto contém dois instrumentais, uma de mesmo nome do álbum e a outra, Cezinha, duas ótimas execuções que assumem a igual brasilidade rural e caipira contida no todo da obra. Enfim, outras referências às diversas riquezas culturais do Brasil devem se encontrar nesta produção de Carlinhos Veiga e que passaram invisíveis a esta análise, o que se mostra como um convite à sua apreciação integral. Mata do Tumbá, como apontada em nossa lista dos melhores álbuns dos anos 2000, é um dos melhores lançamentos da música contemporânea, e é uma obra prima que poderá servir como um modelo, um sublime protótipo de um trabalho que personifica e contextualiza o Belo absoluto nas relativas manifestações culturais brasileiras.

Avaliação: ★★★★★

Mata do Tumbá

(CD) 01/02

(5,0/5)
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