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Memórias de atitude e solidariedade

Gleison Gomes em 17/02/17 4390 visualizações

Hora de viajar. E essa máquina memorial do tempo nos leva agora a 23 anos atrás, 1993. No inicio dos anos 1990, o Brasil não tinha internet, havia acabado de se libertar da ditadura militar e devagar, engatinhava e dava seus primeiros passos na democracia. Conseguimos a Constituição em 1988, voltamos a escolher o presidente via eleições diretas em 1989, com a vitória de Collor e seu posterior processo de impeachment por escândalos políticos.

Se, atualmente, muitas pessoas padecem por necessidades econômicas e sociais, naquela época, com a estrutura de nosso país, era pior. Mas é nesse momento que algumas vozes propondo mudanças começam a ecoar. Uma delas foi a do sociólogo Herbert de Sousa, mais conhecido como ‘Betinho’. Em fevereiro de 1993, o Partido dos Trabalhadores (PT) entrega ao presidente da República, Itamar Franco, uma proposta de Política Nacional de Segurança Alimentar.

Pouco tempo depois, Herbert de Sousa entrega ao presidente um estudo (chamado de Mapa da Fome) o qual mostra que cerca de 32 milhões de pessoas passavam fome em nosso país. Betinho torna-se presidente da Comissão Especial de Combate à Fome, criada pelo Governo Federal. Estava lançada a Campanha Nacional de Combate à Fome e à Miséria. A Igreja Cristã e o universo musical evangélico também abraçariam a causa.

Herbert de Sousa tinha elo com o então pastor Caio Fábio. Segundo Caio, neste período, os meios de comunicação deram um grande apoio à campanha, mas não havia iniciativas efetivas. Houve uma reunião entre Herbert e Caio, e aquele pede um “punch”, um empurrão ao projeto, ajuda para fazer a campanha acontecer. Seria trabalho conjunto. Caio Fábio convoca a comunidade evangélica por todo o Brasil e esta atende prontamente. Houve um engajamento jamais visto.

A Associação Evangélica Brasileira e a Visão Nacional de Evangelização (Vinde), criada por Caio, tiveram participação fundamental. A Vinde, que havia sido criada no Rio de Janeiro em 1978, realizava muitos congressos e cruzadas evangelísticas por todo o Brasil e conseguiu construir um dos maiores complexos assistenciais da América Latina, A Fábrica de Esperança. E é por meio dela que, no contexto da épca, no ano de 1993, é produzido o álbum Atitude e Solidariedade.  A obra foi distribuída pelo selo da gravadora Gospel Records.

Engajamento

Já na capa do disco, temos  imagens de feijão, milho, outros grãos e frutas  a proposta direta do trabalho: a preocupação com as necessidades de alimentação imediata da população carente. As canções justamente sobre essas necessidades de sobrevivência do ser humano, a preocupação com a dignidade da pessoa que não se resume apenas ao plano espiritual. E é nisto que a obra chama atenção, pelo engajamento.

Outro grande destaque do disco consta na participação de vários nomes da música cristã, mesmo pertencentes a gravadoras diferentes. Entre nomes, estão os de Carlinhos Veiga, Ademar de Campos, Jorge Camargo, Brother Simion, Luciano Manga (Oficina G3), Quarteto Vida, Natan Brito (Banda & Voz), Carlinhos Felix, Asaph Borba, Zé Bruno (Resgate), Lília Franco, Cristina Mel, Complexo J, João Marcos, Cristiane Carvalho, Ébano, dentre outros.

Segundo Carlinhos Veiga, recebeu um convite da Vinde para ir ao Rio participar da gravação da música e do clipe. "Fizemos tudo num dia só. Pela manhã gravamos as vozes e algumas cenas num estúdio de gravação no Rio (se não me engano, no estúdio da Line Records – próximo da Candelária), depois, à tarde, gravamos cenas complementares do vídeo no estúdio de TV da Vinde, em Niterói. Eu liderava, na época, a banda Expresso Luz e fui representando o grupo. Vez por outra éramos convidados a participar de eventos da Vinde, como congressos (especialmente de jovens), cruzadas evangelísticas etc. Tínhamos um bom relacionamento com a missão", afirmou o cantor e compositor.

De acordo com Caio Fábio, naquela época não havia uma preocupação com a monetização acima da satisfação com a participação na obra. Ainda segundo ele, logo que convidou os cantores ao projeto, todos atendiam de bom grado e não cobraram nenhum cachê. Assim, contata-se que o projeto Atitude e Solidariedade foi mesmo diferente.

Repertório

Outro que vivenciou a época foi Carlinhos Felix, na época ex-integrante do Rebanhão. “Pra mim, participar foi muito bom. Acho que em qualquer lugar que me colocasse, em qualquer pedaço de música, qualquer trecho, eu ia ficar muito feliz. A participação foi muito confortável pra cantar, foi muito boa. Não só fiz a participação de um trecho, como também fiz parte do vocal. E também cantando junto com todo mundo, foi muito jóia mesmo!”.

Carlinhos ainda complementa ao falar da importância das músicas em seu repertório musical. Para ele, a experiência foi maravilhosa. “Porque a gente cantou lá o que a gente gostava de cantar. Então eu saí cantando as músicas em outros projetos meus e coloquei em meu repertório com muita alegria, porque é muito bom quando a gente participa de um projeto assim, e a gente faz o que gosta e as músicas são agradáveis, e tem mensagem e dá fruto. Muito Joia”, afirmou Carlinhos.

Com relação às canções, destaca-se a faixa-título do vinil. "Atitude e Solidariedade" tem a letra de Caio Fábio e música de Josué Rodrigues. Ganhou um videoclipe e seu alcance foi nacional, sendo executado inclusive na Rede Globo de Televisão. Guardadas as devidas proporções, o videoclipe foi a nossa "We Are the World".

Sobre a época, o vocalista Zé Bruno, da banda Resgate, afirmou que no período do final da década de 1980, existia um clima juvenil e romântico entre as bandas. "Desabrochava um misto de comportamento e missão, um pouco diferente do movimento de hoje. Tenho boas recordações daquele tempo. Na época a gravadora com a qual trabalhávamos nos fez o convite, ficamos felizes de participar.  A Vinde era uma referência no trabalho social e tudo se alinhava com nosso jeito de fazer a coisa”, afirmou o cantor.

Chama atenção no projeto, também, a faixa “Fé e Obras”. Para essa canção, nos vocais, cantaram três notórios nomes do rock cristão: Zé Bruno (Resgate), Brother Simion (Katsbarnea) e Luciano Manga (Oficina G3). Uma música de destaque, seja pela letra questionadora ,“Fé sem obras é morta!”, quanto a sonoridade rock que fecha o lado B do disco. "Toda segunda feira tocávamos juntos. As bandas se revezavam, não foi algo inédito, já acontecia. Acho que a ideia, seja de quem foi, deve ter sido pela amizade que tínhamos, era muito legal. Gravamos no estúdio do Rick Bonadio. As três bandas já tinham feito discos lá. Ele mesmo produziu a faixa. Se eu não me engano foi o Jorge (Resgate) na batera, o Jadão (Katsbarnea) no baixo, o Giovani (Katsbarnea) no teclado e eu na guitarra. Depois colocamos as vozes”, relembrou Zé Bruno.

Vanguarda

Por tudo que representou, Atitude e Solidariedade foi um disco muito importante na história da música cristã. Não obstante, nos faz refletir sobre a quase inexistência, em nossos dias, de ações de cunho semelhante, o de ajudar o próximo em suas necessidades em todos os planos. Carlinhos Veiga, questionado sobre o porquê da falta de ações conjuntas entre os artistas da música voltadas ao amparo do próximo, numerou duas razões.

Uma das razões, segundo o cantor, seria as divisões que surgiram na música cristã brasileira."Nos anos 80 e 90 os artistas tinham mais coisas em comum. Naquela altura o movimento gospel ainda não tinha alcançado todo o seu vigor. Nem utilizávamos essa nomenclatura. Quando surge o movimento gospel, alguns artistas cristãos não se viram dentro dele, por conta das especificações que o próprio movimento continha. Criou-se uma distinção, pelo menos na cabeça dos artistas, sobre o que era gospel e o que não era gospel. Quem trabalhava com música brasileira não se entendia gospel. Gospel era vista como o pop/rock e coisas do gênero", argumentou Veiga.

O segundo motivo, segundo Carlinhos, é uma consequência do primeiro. "Desde então não vimos mais movimentos como a Vinde que aglomerava artistas e que financiava projetos como esse. Algumas iniciativas semelhantes surgiram nas gravadoras gospel, mas a finalidade era puramente comercial e não evangelística/missionária, como a feita pela Vinde”, concluiu o artista. Assim, foram bons e saudosos tempos para a música cristã. E nas memórias, um disco cheio de historicidade e relevância social.

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Gleison Gomes

Historiador, apreciador de música, filmes e bolo de abacaxi.


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